Quando pensar é tomar posição: o pensamento latino-americano segundo Paulo Cannabrava Filho

Diz a antropóloga argentina Rita Laura Segato, que “no século das disciplinas sociais são apenas quatro as teorias originadas em solo latino-americano que cruzaram em sentido contrário a Grande Fronteira”, isto é, a fronteira que divide o mundo entre Norte e Sul geopolíticos, e alcançaram impacto e permanência no pensamento mundial.
Por Paulo Cannabrava Filho*, no Diálogos do Sul

Em outras palavras, são escassamente quatro os vocabulários capazes de reconfigurar a história ante nossos olhos que conseguiram a proeza de atravessar o bloqueio e a reserva de mercado de influencia dos autores do Norte (…) realizaram ademais essa façanha sem acatar as tecnologias do texto da tradição anglo-saxônica nem da francesa, que dominam o mercado mundial de ideias sobre a sociedade a partir da segunda metade do século 20, e sem submissão à política de citação dominante, à lógica da produtividade em termos editoriais, ao “networking” que condiciona o acesso aos “journals” de mais ampla circulação, ou à impostura da neutralidade científica. São elas: a Teologia da Libertação, a Pedagogia do Oprimido, a Teoria da Marginalidade que fratura a Teoria da Dependência, e mais recentemente a Perspectiva da Colonialidade do Poder”.

A Teologia da Libertação 

A primeira dessas pautas teóricas tem como seu formulador inicial o peruano Gustavo Gutierrez, que já foi seguido por mais de uma geração de teólogos, em que se destacam os brasileiros Leonardo Boff e Hugo Assmann, o uruguaio Juan Luiz Segundo e os argentinos Enrique Dussel e Miguez Bonino.

A Teologia da Libertação nasce da busca de estratégias para tirar os marginados sociais da pobreza, em uma perspectiva de assegurar-lhes seu pleno desenvolvimento intelectual, social, econômico em um cenário em que a Igreja Católica busca uma maior aproximação às fontes evangélicas e à palavra e ação do próprio Cristo que sacrificou sua vida para redimir os humanos.

Nos anos de globalização e expansão das ditaduras do capital financeiro e do pensamento único, nem mesmo a Igreja resistiu à maré consumista e alienante e sucumbiu aos ditames do deus mercado. Os teólogos e os apreciadores dessas teorias que aproximavam a igreja dos pobres da terra foram perseguidos, e até calados como nos tempos da velha Inquisição, como no caso de Leonardo Boff.

Hoje, em tempos de todas as crises, a Igreja tenta se redimir de suas culpas de ter feito parte do sistema global e ter sido protagonista de todos os males causados por esse sistema.

Talvez o papel que caiba ao papa Francisco, argentino que quando jovem conviveu com as teorias dos teólogos libertadores, seja o de recuperar a dignidade eclesiástica recolocando a doutrina da Igreja, ou possibilitando aos sacerdotes e aos católicos em geral retomar o caminho da libertação.

De toda maneira, o que acontece hoje, tanto na igreja como na sociedade globalizada dá à Teoria da Libertação e a seus formuladores plena atualidade e relevante transcendência. Como diz Leonardo Boff, “sua missão não se esgota em uma diligência ad intra, ao espaço eclesial. Se ela não quiser escapar da indiferença e do cinismo deve deixar-se mover pelo grito dos oprimidos que se eleva das entranhas da Terra. Poucos são os que escutam esse clamor. Uma teologia que silencia ante a tragédia de milhões de famélicos e condenados a morrer antes do tempo nada tem a dizer sobre Deus ao mundo” (Leonardo Boff:Quarenta anos de Teologia da Libertação, 9/8/2011)

A Pedagogia do Oprimido 

Paulo Freire a formulou no exílio no Chile, em 1970, fundado em sua práxis de alfabetização de camponeses do nordeste brasileiro no final dos anos 1950 e início dos 60. Na realidade, é uma pedagogia da libertação. É uma teoria que fundamenta um método de educação/formação que visa desenvolver no ser humano a capacidade de olhar crítica e criativamente a realidade. Provocou uma verdadeira revolução em um mundo cartesiano e dogmático, abrindo caminhos para o desenvolvimento do pensamento crítico. Possibilitou a formação de amplos aglomerados de homens e mulheres dedicados a resgatar grandes massas de oprimidos da marginalidade tirando-os da ignorância, dando-lhes sentido à vida e condições para seguir nas sendas do conhecimento. É incalculável a influência das teorias de Paulo Freire principalmente nos movimentos sociais, na psicologia, na teologia, nas questões de gênero, nas ciências sociais em geral, nas lutas reivindicativas de inclusão e igualdade social. “Quem melhor que os oprimidos se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora?” – pergunta o mestre Paulo Freire. Em sua obra incita os educadores a deixar de lado a educação bancária e trabalhar junto aos educandos para desenvolver uma visão crítica da realidade. “Ninguém liberta ninguém, nem ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão”, afirma.

Na busca por superar a contradição entre opressor e oprimido, Freire evolui a uma pedagogia da esperança, explicitada em um de seus últimos livros. Aqui o seu pensamento está mais claro. Ele reitera que “A educação neutra não é possível. No ensino, pode-se e se devem transmitir os próprios pensamentos ideológicos, respeitando os do educando, uma vez que ensinar não é transmitir os conhecimentos concretos de um objeto, ensinar é um ato criador e crítico respeitando o antagônico. (…) As pessoas têm que chegar ao fundo do problema por si mesmas e ver a necessidade de dar-lhe forma; não há algumas pessoas que sabem tudo e outras nada (…) É importante que o educador e a educadora potencializem a liberdade, criatividade, capacidade de escolher, etc., dos educandos. (…) É preciso que as minorias, mesmo sendo diferentes entre elas, se unam para lutar por alguns direitos, para poder vencer a uma maioria. (Paulo Freire – Pedagogia da esperança, 1993). A obra de Freire foi traduzida em quase todos os países do mundo.

A Teoria da Marginalidade

A proposição teórica que não apenas fratura a Teria da Dependência como desmascara seus propagadores como agentes do Império, sujeição possível unicamente a mentes desonestas. Marginalidade, assim como exclusão, marginalizados, excluídos tornaram-se palavras da moda, incorporadas tanto pela intelectualidade como e principalmente pelos meios de comunicação. Marginalidade significa exatamente isso: estar à margem, estar excluído dos benefícios da sociedade organizada como Estado. A palavra foi muito utilizada nos anos 1950/60 nos estudos sobre as favelas, misérias, analfabetismo vigoroso. Nos anos 1960 já era entendida como um problema social e desenvolveu-se como teoria, a teoria da marginalidade.

Aponta a contradição dada pela existência de duas cidades nos grandes centros urbanos: a dos incluídos e a dos excluídos, estas sem os recursos de infraestrutura e serviços comuns àquela. No âmbito dos Estados, a visão dialética entre civilização e barbárie levou o Brasil a ser qualificado como Belíndia, com áreas tão desenvolvidas como a Bélgica ou qualquer outro país mais desenvolvido da Europa convivendo com áreas de pobreza tão radical como nas regiões mais pobres da Índia. Ou no caso do México, “tão longe de deus e tão perto dos Estados Unidos”.

Esse mundo dual não é espontâneo nem surge por obra divida, mas é consequência da estrutura social resultante dos modelos de desenvolvimento capitalista dependentes, mal estruturados, com sequelas coloniais como racismo, corrupção, poder oligárquico, elites subordinadas, etc.

Esse dualismo na realidade social dividirá também os teóricos e depois os prognósticos para o desenvolvimento.

Os Estados Unidos do pós 2ª Guerra Mundial começou a desenvolver a estratégia para conquistar a hegemonia global. Iniciou com ingentes esforços por desqualificar o que era a cultura dos vencidos e valorizar o que entendiam como a cultura do novo mundo, que mais que cultura oferecia um modo de vida consumista. Durante décadas estiveram concentrados em dominar os meios de comunicação e cooptar os intelectuais e produtores de artes. Havia que evitar por todos os meios que desabrochassem as teorias desenvolvimentistas e independentistas tanto nas universidades como nos organismos multinacionais, como a Cepal de Prebisch e Furtado.

A Aliança para o Progresso, no ano de 1960, nasce para fazer oposição à intenção integradora de uma Operação Pan-Americana proposta por Juscelino Kubitschek e a maré libertaria emanada da Cuba revolucionaria. O balanço de dez anos da Aliança comprovou que para cada dólar dado a título de ajuda para o desenvolvimento foram levados dez dólares em lucros, dividendos e outras prebendas. Apesar disso, por toda parte foi dado grande espaço aos teóricos que, esquecendo-se da dialética e da ética, prestaram-se a defender o caminho da dependência e da manutenção do status quo para a superação do subdesenvolvimento e da marginalidade.

Em 1970, Fernando Henrique Cardoso e Henos Paleto publicam no Chile o livro “Desenvolvimento e Dependência, financiados pela CIA intermediada pela Ford Fundation. Cardoso foi elevado à categoria de Príncipe dos Sociólogos, enquanto que todos os que se lhe opuseram e destroçaram suas propostas foram expulsos de suas universidades ou simplesmente continuam ignorados pelos meios, quando não execrados. Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra são os principais, entre os brasileiros, e o argentino José Nun. Opõem à teoria da dependência (dos Estados Unidos), a teoria da libertação – superar as causas estruturais mudando o modelo, abandonando o capitalismo neocolonial a serviço do Império.

Estava aberto a caminho a ser percorrido por Aníbal Quijano que, em 1968, assevera que “A conformação social da América Latina e sua historicidade estão associadas a situações de dependência e os processos de marginalização se mundializam a partir da concentração de poder dos países centrais”.

Surgida na América Latina para diagnosticar e superar o subdesenvolvimento e a dependência, é recriada na Europa três décadas depois para estudar os efeitos da globalização.

Às interpretações nem críticas nem dialéticas que tendem a perpetuar o status quo, há que opor uma maré de pensamento crítico e dialético, transformador da realidade, capaz de produzir o homem novo em um mundo sustentável.

A Colonialidade do Poder 

A última dessas quatro pautas teóricas, formulada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, representa, segundo a antropóloga Segato, “uma quebra nas ciências sociais que deve ser entendida no contexto e em coetaneidade com a mudança social que a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria impõem à história política do século 20. A enunciação dessa perspectiva radicaliza elementos embrionária e difusamente presentes nos escritos anteriores de seu formador até definir uma viragem palpável em sua história intelectual que, ao mesmo tempo, introduz um, giro na história do pensamento crítico latino-americano e mundial.

Esta orientação manifesta, possível apenas quando se desmonta o paradigma setentista e seu contexto de antagonismo enclaustrado na polaridade capitalismo/comunismo, constitui hoje uma inspiração cada vez mais evidente para a construção das linguagens críticas e das metas políticas que orientam diversas frentes de luta da sociedade, muito especialmente os movimentos indígena e ambientalista”. E agrega que a formulação da perspectiva crítica da Colonialidade do Poder desenvolvida por Quijano é um momento de ruptura de grande impacto no pensamento crítico nos campos da história, da filosofia e das ciências sociais na América Latina, por um lado, e de nova inspiração para a reorientação dos movimentos sociais e da luta política por outro”. (Rita Laura Segato: Ejes argumentales de la perspectiva de la Colonialidad del Poder – Revista Casa de las Américas No 272, julio septiembre de 2013).

As quatro décadas perdidas (consenso de Washington e ditadura do capital financeiro, ditaduras e repressão) seguida dos anos de crise sistêmica que contribuíram para agravar as desigualdades sociais, refrescam a atualidade das teorias fundadas na colonialidade do poder.

A visão de Quijano é holística, com ênfase no processo histórico, e aprofundando na busca das origens da marginalidade vai encontrá-la 500 anos antes, no início da conquista e imposição dos Estados Coloniais pelas potências ibéricas. Nesse contexto o capitalismo é entendido como o conjunto da articulação estrutural de todas as formas historicamente conhecidas de controle do trabalho ou exploração, escravidão, servidão, pequena produção mercantil independente, reciprocidade e salário, etc. A colonialidade do poder, portanto, tem origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradora e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecida. Implica um elemento no padrão de poder hoje mundialmente hegemônico. O eurocentrismo nada mais é senão a continuidade do colonialismo com forte componente de superioridade de raça. A mesma coisa se dá com os adoradores do “way of life made in USA”.

Assim, segundo Quijano, “… o atual padrão mundial de poder consiste na articulação entre: 1) a colonialidade do poder, ou seja, a idéia de “raça” como fundamento do padrão universal de classificação social básica y de dominação social; 2) o capitalismo, como padrão universal de exploração social; 3) o estado como forma central universal de controle da autoridade coletiva e o moderno estado-nação como sua variante hegemônica; 4) o eurocentrismo como forma hegemônica de controle de subjetividade/intersubjetividade, em particular no modo de produzir conhecimento…”

Já a globalização em curso, para Quijano é “em primeiro lugar a culminação de um processo que começou com a constituição da América e a do capitalismo colonial/moderno e euro-centrado como um novo padrão de poder mundial”.

Para que se entenda a ideia de raça, Quijano esclarece que “Na América, a ideia de raça foi um modo de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu sobre o resto do mundo levaram à elaboração da perspectiva eurocêntrica de conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessa relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente (assim como a invenção da categoria de cor) isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominados e dominantes. Desde então vem demonstrando ser o mais eficaz e perdurável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender inclusive outro igualmente universal, porém mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram situados em uma posição natural de inferioridade e, em consequência, também seus traços fenotípicos, assim como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos status, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outros termos, no modo básico de classificação social universal da população mundial”.

Nosso desejo seria colocar aqui toda a obra magistral de Quijano, mas não é o caso. Então, vamos nos fixar na intenção inicial do artigo que é a de mostrar a importância do pensamento latino-americano e instigar os leitores a mudar o rumo de seus estudos. Vão encontrar muito mais beleza e sabedoria em Quijano, Martí, Mariátegui, Paulo Freire ou Leonardo Boff, Prebisch ou Theotonio dos Santos que nos textos acadêmicos do Norte, repetitivos, enfáticos e perpetuadores do status quo.

*Paulo Cannabrava Filho é Jornalista editor de Diálogos do Sul e historiador.

Publicado em http://www.vermelho.org.br/

 

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