No Festival de Berlim, indígenas lançam manifesto contra intolerância
O documento foi lido após a exibição do documentário “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi, sobre a evangelização de povos indígenas.
A magia da floresta veio para o frio de Berlim, e junto com a magia vieram também o drama da violência do etnocídio, do proselitismo religioso e da destruição da Amazônia. Foi exibido no sábado 17 de fevereiro, na sessão Panorama do Festival de Cinema de Berlim, o filme Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, produzido por Laís Bodanzky e os irmãos Caio e Fabiano Gullane (time que volta a Berlinale depois do sucesso de Como Nossos Pais, de Laís, ano passado), um belíssimo documentário que mostra a violência do etnocídio dos povos indígenas no Brasil.
O filme acompanha Perpera, um antigo xamã do povo Paiter-Suruí que foi convertido ao evangelismo, tendo que abandonar não só os poderes espirituais, como toda a transmissão de conhecimento ligada as práticas xamãnicas. Estavam junto na sessão em Berlim os indígenas Ubiratã e Kabena Suruí, mãe e filho — Perpera permaneceu no Brasil por não viajar de avião. Após a sessão, o diretor Bolognesi leu um manifesto contra o etnocídio escrito por lideranças indígenas, que reproduzo na íntegra abaixo.
“Eu disse ao Perpera que queria filmar o seu dia-a-dia, porque o pajé é uma figura central na vida do povo Paiter-Suruí, e ele tinha essa importância. A igreja evangélica está lá e foi filmada com respeito; não quisemos fazer nenhum julgamento de valor”, disse Bolognesi.
Os Paiter-Suruí foram contatados pelo sertanista Chico Meireles e seu filho, Apoena, em setembro de 1969. Nos anos seguintes ao contato, suas terras passaram a ser loteadas ilegalmente pelo Incra, que incentivava a invasão, e também objeto de grilagem, exploração de madeira e garimpo. Junto desse saque pirata e violento, epidemias mortais levaram centenas, talvez milhares, de indígenas.
Tiveram também importantes aliados entre os brancos, como a antropóloga Betty Mindlin, o linguista Denny Moore, o sertanista Apoena Meireles, que foi até o fim de sua vida, assassinado em 2004, um fiel defensor dos Suruí.
Perpera nasceu antes desse furacão do contato com o mundo dos brancos e a invasão do espírito do capitalismo. Tinha aproximadamente 20 anos no encontro com Apoena e Chico Meireles. E, portanto, uma formação de vida de seu povo, conhecimento do universo Paiter-Suruí e o convívio e o contato com os espíritos da floresta. Ainda criança, depois de quase morrer por uma doença, Perpera teve sonhos que não deixaram dúvidas de que ele era um uãuã — pajé, na língua tupi Paiter-Suruí. A conversão faz esvaziar de sentido todo esse conhecimento, essa outra relação com o planeta e a forma de viver e habitar o mundo.
O caso de Perpera não é um caso isolado, e após ver o filme, Cristine Tekuá e Carlos Papá Mirim Poty lideraram um manifesto, a reunir as principais organizações e líderes indígenas do país, incluindo o celebre xamã yanomami Davi Kopenawa, autor do extraordinário livro A Queda do Céu (Cia. das Letras, 2015). No manifesto, denunciam a intolerância religiosa, que é crescente e ataca não apenas os povos indígenas, mas os povos de santo, de terreiro, candomblé, umbanda, macumba, comunidades quilombolas, sertanejas. A intolerância agride a possibilidade do convívio, como dizem os indígenas no manifesto abaixo: “Precisamos superar a impossibilidade de conviver em igualdade nas nossas diferenças, e passar a partilhar o mundo”. Ao invés de ex-pajés, como Perpera, que possa o mundo ter no futuro“mais pajés”.
Mais pajés, menos intolerância
Mais pajés, mais Céu, mais espíritos, mais floresta, mais vida. Menos ódio. Menos intolerância. Menos racismo. Precisamos superar a impossibilidade de conviver em igualdade nas nossas diferenças, e passar a partilhar o mundo com outros seres vivos, outros viventes, viver e se olhar e se reconhecer no olhar do outro, com reciprocidade, com respeito aos humanos e respeito também aos não-humanos, uns ao lado dos outros, vivendo juntos em nossas diferenças. Existe apenas um planeta, e todos podemos viver nele, livres do peso do racismo e do sexismo. Existem muitos mundos que convivem nas diferentes formas de habitar este planeta.
Durante muitos séculos, os pajés equilibram a vida na Terra. Com seus cantos, rezas, curas e sabedoria, massageiam o Planeta proferindo lindas palavras, as mais belas palavras sagradas. São médicas e médicos, rezadoras e rezadores, curandeiras e curandeiros, sabedores do mundo, com suas próprias ciências e sua filosofia.
Em nome de um deus, homens missionários agrediram nos últimos séculos muitas outras formas de vida. Se nos anos 1970 a própria Igreja admitiu sua violência catequista, esse processo não arrefeceu. Assistimos hoje ao crescimento de novas cruzadas de intolerância, sobretudo de missões protestantes. Se aliam com os inimigos dos povos indígenas para deles extraírem suas almas. O etnocídio que visa esvaziar todos os corpos de suas espiritualidades. O genocídio matou os povos em seus corpos físicos e o etnocídio em seu espírito, sua essência, sua forma de viver, que é a sua cultura.
Alguns leem na Bíblia a mensagem para invadir o mundo inteiro para forçadamente pregar o evangelho para todas as criaturas, entendendo que quem não se converter irá arder no inferno que essa própria religião inventou. Essa corrida colonial provoca ainda hoje, talvez como nunca antes, uma disputa por almas que esconde poder, dinheiro, controle de territórios, mercados de almas.
Hoje atravessamos muitas crises, ecológica, econômica, política, a nossa frágil democracia foi atacada e os territórios indígenas estão sendo invadidos e saqueados. Junto com o ferro e o fogo, vem a conversão racista. Trocam as rezas pela bíblia e as medicinas por aspirinas. Epidemias de depressão provocam os maiores índices de suicídio do mundo manchando de sangue as lindas florestas do Brasil.
Os espíritos da floresta estão bravos, pedindo socorro, pois cada árvore derrubada, cada rio contaminado, faz com que desapareçam. Assim disse um sábio pajé, a floresta é um portal cristalino, e todos nós humanos precisamos dela. Se acabar a floresta, também acabará nosso espírito. Os pajés precisam existir, e para existir, precisam ser respeitados. Antes que seja tarde demais, que o mundo esteja esvaziado de espiritualidade e o Céu caia sobre nossas cabeças!
Basta de etnocídio! Mais pajés! Menos intolerâncias!
Assinam essa carta manifesto as seguintes organizações e lideranças:
Organizações:
Associação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira -COIAB
Associação Aty Guassu Guarani Kayowá
Comissão Yvy Rupa
Conselho dos Povos Indígenas de São Paulo -CEPISP
Federação do Povo Huni Kuî do Acre – FEPHAC
Instituto Maracá
Fórum dos professores indígenas do Estado de São Paulo, FAPISP
Organização Nhandepa Guarani e Huni Kuî
Rádio Yande
Rede de Memória e Museologia Indígena
ARPIN Sul
ARPIN Sudeste
APOINME
FEPIPA
Lideranças:
Aílton Krenak
Álvaro Tukano
Alberto Terena
Chicão Terena
Davi Yanomami Kopenawa
Daiara Tukano
Denilson Baniwa
Dinaman Tuxá
Ninawa Huni Kuî
Nara Baré
Carlos Papá Mirim Poty
Cristiane Tekuá
Genito Gomes Kayowá
Marcos Tupã
Antonio Carvalho
Júlio Garcia Karai Xiju
Nelson Ribeiro
Marcos Moreira
Mauricio da Silva Gonçalves
Sama Hani Kuî
Sônia Guajajara
Banima Hani Kuí
Davi Popygua
Joana Munduruku
Benício Pitaguary
Paulo Karai
Rosa Pitaguary
Manifesto dos Povos e Lideranças Indígenas do Brasil
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