A valorização das línguas Bantu em Moçambique
A linguista moçambicana Perpétua Gonçalves contou à DW África as dinâmicas vividas do Português em Moçambique e dos atropelos às línguas Bantu, línguas locais do país que através dos tempos têm sido mais valorizadas.
É uma relação viva, “com quase sangue e lágrimas” a que tem sido vivida entre as línguas faladas em Moçambique, desde a sua independência. Durante a época colonial, o português era a língua de escolarização e as línguas locais de Moçambique – as 20 línguas Bantu – foram proibidas de serem estudadas, por representarem uma ameaça à coesão nacional. Alguns anos após a independência do país, aparece pela primeira vez uma referência explícita à grande importância das culturas Bantu para a comunidade moçambicana na Constituição Nacional.
Em 1992 deu-se uma alteração político-linguística, de onde surgiu uma valorização da multilíngua. E apesar do português “continuar a ser essencial para prestígio e mobilidade social”, houve progressos das línguas Bantu para dominios altos em sociedade, nomeadamente para trabalho – algo que seria impensável no pós-colonialismo. Já nos anos 2000, investiu-se na formação universitária de línguas Bantu e, com isto, criaram-se convenções linguísticas, bem como materiais de apoio, como gramáticas e dicionários em todas as 20 línguas Bantu.
Hoje em dia, o português mantém-se em Moçambique e, segundo a linguista Perpétua Gonçalves, continua a ser uma língua de prestígio. Contudo, o destaque de Perpétua vai para a valorização das línguas Bantu, que têm reforçado a auto-estima da população, que finalmente vê as suas línguas valorizadas. E o que permitiu isto foi, segundo a linguista, “o facto de ter sido introduzido o ensino bilingue”. Este ensino “vem sendo testado desde 1993, uma longa fase experimental até 2003, e entrou definitivamente como uma alternativa para o ensino oficial”. Ainda cobre “uma população reduzida”, pois no “total no ensino bilingue estão 51 mil alunos, ao passo que no total do ensino monolingue em português, aquele que existia até à criação do ensino bilingue, há cerca de 5 milhões”. A linguista sublinha a diferença de valores mas relembra que este passo “tem um valor simbólico”.
Número de falantes de português a crescer
Apesar da constante valorização das línguas Bantu, a língua portuguesa tem vindo a ganhar cada vez mais falantes em Moçambique. Em 1980, os censos apontavam que o número de falantes de português como língua materna era 1,2%. Hoje, quase 11% da população tem o português como primeira língua. Contudo, Perpétua afirma que esta não é, nem nunca foi, a língua de comunicação das comunidades. “De acordo com os dados de 2007, 50% da população fala português”, diz. “Destes 50%, 10% ou um pouco mais, falam português como língua materna, e cerca de 40% falam português como língua não materna”.
Contudo, apesar destes valores “o português nunca foi, nem no tempo colonial nem agora, uma língua de comunicação das comunidades”. Conta que o” português está principalmente implantado nas cidades”, mas que “se queremos pensar em termos de comunidade, as línguas Bantu são as línguas em que as populações se comunicam”, afirma.
Os falantes de uma língua naturalmente geram fenómenos linguísticos que a modificam e, no caso do português de Moçambique, existem muitas variações do português europeu. Mas é aí que reside a riqueza de uma língua ou, noutra perspetiva, seria mais vantajoso normalizá-la?
“Vamos ou não considerar válidas as palavras introduzidas pela população em Mocambique? Vamos ou não vamos considerar válidas as novas regras de concordância que os falantes usam nos seus discursos?”, questiona a linguista. Perpétua deu o exemplo “do pronome lhe”. Este pronome em “português existe mas em determinados contextos. Eu dei um livro ao João – Eu dei-lhe um livro. Eu disse-lhe uma coisa”. E segundo a linguísta, em Moçambique o lhe é usado em contextos que não estão previstos pela gramática do português europeu. Por exemplo, “Eu vi o João na praia – Eu vi-lhe. Eu convidei o João – Eu convidei-lhe”. Usos que, diz, não são “admissíveis na gramática do português europeu”.
Fonte: DW.de
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