A herança da imigração na fala do brasileiro

Estima-se que ainda estejam em uso no Brasil mais de 50 línguas de imigração, muitas delas trazidas por europeus a partir do início do século 19. Contato com português resultou em variações como talian e hunsriqueano.

Nascido no Rio Grande do Sul, o biólogo Piter Kehoma Boll entrou em contato com a língua portuguesa somente na idade escolar. “Dentro de casa, a minha família usava apenas o hunsriqueano para se comunicar”, conta. “Meu contato com o português foi acontecer somente por meio da televisão e, mais tarde, na escola.”

Em 1824, a família de Boll migrou de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, para o Brasil. Assim como muitos imigrantes que chegaram ao país no século 19, os ancestrais de Boll não falavam o alemão oficial, mas o dialeto hunsrückisch.

Em terras tupiniquins, o hunsrückisch entrou em contato com o português e se fundiu com algumas palavras, dando origem a uma nova língua, o hunsriqueano, falado no Brasil há quase 200 anos.

O médico Ivan Seibel, nascido em Santa Leopoldina, no Espírito Santo, também aprendeu o português somente na escola. “Na região onde nasci, em meados do século 20 se falava quase que exclusivamente o alemão e algumas línguas de origem germânica, como o hunsrückisch e o pomerano”, conta.

Assim como os Boll, os Seibel vieram do sudoeste da Alemanha, e a família materna do médico veio de Hinterpommern (Pomerânia Oriental), região que hoje pertence à Polônia e da qual muitos antigos habitantes migraram para o Sul e Sudeste brasileiros.

“O pomerano é uma variedade linguística germânica. Na Europa, possui o status de dialeto alemão”, explica a linguista Neubiana Beike, pesquisadora do Inventário da Língua Pomerana no Brasil.

Assim como o hunsriqueano, no Brasil, o pomerano é considerado uma língua, mais especificamente, uma língua de imigração.

“As línguas de imigração são aquelas trazidas de fora, por imigrantes que chegaram ao Brasil a partir do início do século 19 e faladas por seus descendentes”, explica a linguista Rosângela Morello, coordenadora do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL).

Segundo o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, as Línguas Brasileiras são divididas em cinco categorias: línguas de imigração, indígenas, de sinais, crioulas e afro-brasileiras. O IPOL estima que existam 56 línguas de imigração ainda em uso.

“O Brasil não é monolíngue. É um país plurilíngue, multicultural e multiétnico”, ressalta Beike. “Além do pomerano e do hunsriqueano, o país também tem falantes do talian, do platt menonita, vêneto, suábio, vestfaliano, wolgadeutsch, húngaro, lídiche, caboverdiano, da variedade nipo-brasileira, variedades do suíço e do holandês, etc”, lista a pesquisadora.

Cidades com várias línguas

A partir de 2007, línguas de imigração se tornaram línguas cooficiais em 19 municípios, sendo ensinadas nas escolas municipais junto com o português. Em Pomerode, Santa Catarina, há três línguas oficiais: português, alemão e, desde 2017, o pomerano. Em 2012, o hunsriqueano se tornou Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul.

Além das iniciativas governamentais, livros, músicas e meios de comunicação em línguas de imigração vêm sendo criados por seus falantes. Um dos exemplos é o portal Folha Pomerana, criado em 2013 e editado pelo próprio Seibel em pomerano. “Temos cerca de 10 mil assinantes, além de colaboradores em diversas partes do Brasil e até na Alemanha”, conta o médico.

Iniciativas como a de Seibel ajudam a fazer com que a língua vinda da Pomerânia continue viva. “As novas gerações não estão mais falando o pomerano. Os pais e os avós falam a língua, porém, não chegam a ter netos falantes ativos”, comenta Beike.

“Na fase da alfabetização em língua portuguesa, as crianças começam a deixar de falar o pomerano. A fase da adolescência também é crítica, pois os jovens relatam sentir vergonha em falar o idioma e ser excluídos”, diz.

A linguista alerta que algumas palavras do idioma pomerano já começaram a ser esquecidas pelos mais novos. É o caso de “twairad” (bicicleta) e “ootmen” (respirar).

Depois que saiu da casa dos pais e que faleceu a bisavó alemã, que nunca aprendeu o português, Boll conta que o hunsriqueano deixou de fazer parte do seu dia a dia. Foi aí que surgiu a ideia de criar um blog para não perder contato com o idioma.

“Línguas minoritárias correm o risco de desaparecer em poucas gerações, e o hunsriqueano é uma delas. Como praticamente não existe um material de fácil acesso que registre, divulgue e ensine o idioma, decidi fazer o que estivesse ao meu alcance”, diz.

Em 2012, Boll começou a registrar conversas na língua. “Dois anos depois, montei a primeira versão do dicionário em hunsriqueano e sigo atualizando-o toda a vez que me deparo com uma palavra nova”, conta. O dicionário está disponível online para download e inclui mais de mil verbetes.

Italiano dos trópicos

Talvez o caso mais curioso de línguas de imigração brasileiras seja o talian, que é, desde 2014, Patrimônio Cultural do Brasil, além de língua cooficial em oito cidades do sul brasileiro.

“O talian, também conhecido como vêneto-brasileiro, se formou do contato entre a variedades do italiano faladas na região do Vêneto, na Itália, e as do português faladas na metade do século 19”, explica Morello.

Assim como o hunsriqueano, o talian tem dicionário e até um material de gramática, que é usado em Serafina Correa, no Rio Grande do Sul. Também há livros, jornais, cantigas e músicas no idioma.

Pelo menos 200 estações de rádio brasileiras transmitem em talian. Uma delas é a Rádio Brasil Talian. “Somos uma rádio cultural e colaborativa feita por descendentes de italianos que, de forma gratuita, fazem a programação diária em talian”, explica o responsável pela RBT, Luiz Agostinho Radaelli. “O talian está no coração de nossos ouvintes, já que as primeiras palavras que muitos deles ouviram de suas mães foram pronunciadas nesse idioma.”

A italiana Giorgia Miazzo veio ao Brasil para um intercâmbio nos anos 2000 e descobriu as comunidades “talianas”. “A minha família, assim como muitos moradores antigos do norte da Itália, não fala o italiano oficial, mas dialetos. Assim que cheguei ao Brasil, percebi que muitos falavam uma língua praticamente igual ao vêneto, dialeto que falo em casa”, conta.

Desde então, Miazzo passou a pesquisar o talian e escreveu o livro didático Cantando in Talian, que já foi usado em algumas cidades do Brasil. “O que está nos livros escolares é uma história italiana da imigração no Brasil, mas não há nada da cultura ‘taliana“, comenta Miazzo.

“Há uma enorme importância cultural para todos os brasileiros no ato de manter vivas as línguas de imigração, porque o Brasil não seria como é, rico e diverso, se não fosse pela presença histórica de todos esses grupos e suas línguas”, afirma Morello. A linguista considera ser urgente que o país tenha um censo linguístico para mapear com precisão todas as línguas faladas no Brasil.

Fonte: DW

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