O índio da mídia
A manchete do Estadão (23/11/68) usou o verbo trucidar e as palavras chacina e ferocidade quando noticiou que nove corpos de membros da Expedição Calleri foram localizados, em 1968, no território dos Waimiri-Atroari. Embora ninguém soubesse ainda o que havia efetivamente ocorrido, o repórter, antes mesmo de se deslocar até a área, se apressou em afirmar que os índios eram os autores da carnificina. Para isso, exibiu antecedentes históricos sem mencionar qualquer referência documental:
“Calcula-se que mais de 1500 brancos foram massacrados pelos Waimiri-Atroari de umas décadas para cá”.
Quem calculou? O sujeito é indeterminado. Quantas décadas? O período é impreciso. De onde tirou os dados? Sabe Deus, que é o Único a poder desvendar os mistérios existentes dentro de uma cabeça podre. O certo é que, sem citar fontes, o Estadão traça o perfil dos Waimiri de forma sádica e preconceituosa: “Os silvícolas costumam picar suas vítimas em pedacinhos e queimá-las até virarem cinzas“. Olhando agora, a gente duvida que alguém tenha sido tão malvado e perverso para publicar tal bobagem, digerida por milhares de leitores, muitos dos quais acabaram acreditando na potoca. O relato virou “verdade”, se fez carne e habitou entre nós.
Afinal, quem matou os nove membros da Expedição, entre eles o padre Calleri? Quando suspeita que a ação é cometida por índios, a grande imprensa, em voz uníssona, apresenta-os como os sujeitos da ação e qualifica-os como feras, reforçando preconceitos. A Expedição visava atrair os “silvícolas” para afastá-los de seu território, que seria rasgado pela estrada Br-174. Apesar disso, para a mídia, os índios agiram não em legítima defesa da terra invadida, mas por causa de sua “natureza bestial”.
No entanto, quando ocorre o contrário, o sujeito da oração não é quem disparou o tiro assassino, continua sendo o índio, como registrou O Globo em manchete na última sexta-feira: “INDIO MORRE EM CONFRONTO COM POLICIAIS”. Ou seja, ninguém matou, ele é que morreu. Não há responsáveis. Também não “se calculou” os índios mortos “nas últimas décadas”.
Na regra do jornalismo é preciso responder, entre outras perguntas, o “quem”, já no primeiro parágrafo, no lide. Quem matou o terena Oziel Gabriel, em Sidrolândia (MS), na fazenda que desde 2010 foi declarada Terra Indígena? Quem disparou os tiros que feriram muitos índios, entre eles, mulheres, idosos e crianças? Por que? Nenhuma análise foi feita pela mídia sobre as razões do conflito, nem sobre quantos índios “morreram” nas “últimas décadas”.
Um juiz federal deu a reintegração de posse ao ex-deputado Ricardo Bacha que jura, fazendo figa, que a terra é dele. Dez equipes da Policia Federal e cem homens da Tropa de Elite da PM, armados, cercaram os índios, jogaram bombas e dispararam tiros. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo diz que “se a investigação comprovar irregularidade ou abuso, os responsáveis serão devidamente punidos“. Deixa ver se entendi bem: quer dizer que existe, então, “assassinato regular” e “assassinato irregular”? “Morte com abuso” e “morte sem abuso”?
– “Até o momento não se pode dizer de onde partiu o tiro. Não prejulgaremos” – disse Cardozo, que não faz prejulgamento quando se trata de saber quem matou índios, mas não hesita em prejulgar inofensivos facebookeiros quando denuncia “ativistas que estariam incentivando a violência nas redes sociais“.
O ministro não sabe, mas eu sei de onde partiu o tiro. Se ele quiser, posso testemunhar e dar os nomes aos bois e às vacas. O primeiro tiro foi disparado por um canhão em abril de 1.500 e de lá para cá, “nos últimos séculos”, metralhadoras de repetição não cessaram de cuspir fogo, disparadas por bandeirantes ao longo de todo o período colonial, por bugreiros no Império e na República e agora pelo agronegócio ávido em abocanhar as terras indígenas.
O que ocorreu aqui foi “a maior catástrofe demográfica da história da humanidade”, segundo demógrafos da Escola de Berkeley, que refinaram seus métodos de análise. Nunca uma região foi esvaziada tão violenta, drástica e rapidamente como o continente americano. Mas o processo não terminou no período colonial. Persiste ainda hoje. O colonialismo, como estrutura de dominação é historicamente datado, mas a colonialidade – para citar termo consagrado por Anibal Quijano – é mais profunda e duradoura. Continua entranhada na cabeça das pessoas, orientando comportamentos.
O que tem na cabeça de um ministro, de um juiz, de um jornalista, de um governador, de um policial, de um bispo e até de um fazendeiro, enfim, qual imagem têm do índio esses agentes que algumas vezes são obrigados a lidar com culturas dotadas de lógicas e de línguas tão diferentes? Que conhecimentos possuem eles sobre esses povos?
Essas e outras perguntas foram respondidas pela jornalista e pesquisadora amazonense Verenilde Santos Pereira, que defendeu na última sexta-feira, 31 de maio, sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) sobre a cobertura jornalística no “massacre” da Expedição Calleri. Ela conhece os jornais por dentro, trabalhou como repórter em vários deles, inclusive no “Porantim”, o jornal mensal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Em sua pesquisa, a agora doutora Verenilde fuçou arquivos, recuperou as matérias jornalísticas publicadas por jornais de Manaus e outros de circulação nacional para analisá-las e refletir sobre a singularidade jornalística na cobertura feita sobre a Expedição Calleri. Seu objetivo era descobrir o que foi silenciado para a afirmação de tal singularidade.
P.S.2 – Charge de Carlos Latuuf e de Fernando Assaz Atroz que volta com toda força, para alegria de todos.
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